Opinião

Sistema penal decorrente da sociedade da transparência será bestial

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22 de março de 2018, 6h09

I. Introdução
Todo Direito Penal é o reflexo de uma determinada política criminal, e toda política criminal, por sua vez, depende de um certo modelo de Estado[1]. Se assim é, então há fundadas e sobradas razões para temer o futuro do sistema penal[2]: o regime neoliberal, por meio de novas tecnologias de poder, fez surgir aquilo que o notável filósofo germano-coreano Byung-Chul Han denominou de sociedade da transparência (Transparenzgesellschaft), isto é, uma sociedade marcada pela vigilância e pelo controle máximo da psique humana[3]. Nas linhas seguintes, pretendo, ainda que em termos bastante gerais, alcançar três objetivos: em primeiro lugar, sustentar que já não mais estamos naquilo que Foucault chamou de sociedade disciplinar[4] (uma sociedade essencialmente voltada à biopolítica e, portanto, ao controle do corpo[5]), mas, sim, numa sociedade psicopolítica, é dizer, numa sociedade da exploração da psique humana[6]; em segundo lugar, caracterizar a emergente sociedade psicopolítica da transparência como uma sociedade regida pela máxima totalitária "nada que se faça, nada que se pense poderá escapar aos olhos do mundo"; por fim, mas não menos importante, tentarei demonstrar que a sociedade da transparência produzirá graves consequências para o sistema de Justiça Criminal, consequências, aliás, que já começam a ser sentidas.

II. Da biopolítica à psicopolítica
De acordo com Foucault, a partir do século XVII, o poder deixa de se manifestar como a capacidade do soberano de impor a morte (o poder bruto da espada!), para se mostrar como vigilância e disciplina: a então nascente sociedade biopolítica disciplinar caracterizava-se por uma meticulosa administração (um treinamento ortopédico) dos corpos, pretendendo com isso submeter suas forças a um estado de docilidade e utilidade[7]. Hoje, entretanto, assistimos a uma nova mudança de paradigma: como sustenta convincentemente Han, passamos de uma sociedade biopolítica disciplinar a uma sociedade psicopolítica da transparência[8]. De fato, opera-se com o neoliberalismo um psychic turn: o poder deixa de se concentrar primariamente na esfera somática do ser humano, para focar em sua dimensão psíquica[9]. Se a rudimentar tecnologia ortopédica da antiga sociedade disciplinar era incapaz de penetrar nos recônditos da alma humana para dominá-la, agora as novas tecnologias digitais já estão aptas a fazê-lo[10]. Realmente, o grande volume de dados (big data) gerados a partir de buscas na internet e outras manifestações on-line tem propiciado isso[11]. A web revela-se, assim, como um novo panóptico.

Por óbvio, a sociedade psicopolítica da transparência apresenta uma organização panóptica bastante peculiar, substancialmente distinta daquela clássica estrutura concebida há séculos por Bentham. Senão vejamos. (A) Por meio do panóptico digital, tem-se uma substituição do olhar do vigilante situado na torre central por olhares múltiplos e difusos. Em outras palavras, enquanto o panóptico de Bentham caracterizava-se por sua perspectividade, o novo panóptico digital é aperspectivístico: a observação faz-se possível a partir de qualquer lugar, por qualquer pessoa[12]. (B) Ademais, como se sabe, no panóptico de Bentham os confinados não podiam comunicar-se entre si, pois eram alocados em celas isoladas. Já os participantes do novo panóptico digital comunicam-se uns com os outros freneticamente. No panóptico digital, já não se pretende alcançar a vigilância através do isolamento espacial e comunicacional, mas justamente pelo meio inverso, é dizer, pelo estímulo à hipercomunicação e hiperconexão[13]. Em suma: quanto maior o fluxo de informações, maior será o controle. (C) Finalmente, é importante observar que enquanto os confinados do panóptico de Bentham eram submetidos à exposição por ação de um terceiro (alo-exposição), no caso do panóptico digital são os seus próprios participantes que, em autêntica servidão voluntária, aceitam disponibilizar na web dados de sua intimidade e privacidade (autoexposição). Insista-se: na era do panóptico digital, são os próprios indivíduos que aceitam ser os agentes voluntários (e não pagos!) de sua vigilância[14].

A sociedade psicopolítica da transparência manifesta-se, assim, como uma sociedade confessional[15]. Bauman aborda a questão em seus precisos termos: “Vivemos hoje numa sociedade confessional, na qual, metaforicamente falando, microfones estão posicionados em confessionários, aqueles antigos santuários da privacidade e da intimidade, e conectados a alto-falantes instalados em praças públicas — embora também estejam ligados diretamente a servidores que armazenam as confissões (…)”[16]. Celulares, tablets e notebooks são os microfones referidos por Bauman, e empresas como Google e Facebook representam os novos confessionários.

Mas por que todos esses indivíduos aceitam ser os agentes voluntários de sua vigilância? Embora esta pareça uma autêntica vexata quaestio, a bem da verdade não o é; não é preciso nenhum sacrificium intellectus para respondê-la, bastando, para tanto, uma simples análise do modo pelo qual o poder se articula na atual sociedade psicopolítica da transparência. Se na sociedade biopolítica disciplinar tinha-se um poder exclusivamente inibidor e repressor, na sociedade psicopolítica da transparência o poder, com certa frequência, assume a forma de um smart and friently power, que age de modo estimulante e sedutor. Com efeito, se no clássico panóptico de Bentham o poder impunha aos prisioneiros o isolamento e o silêncio, os atuais usuários do panóptico digital são constantemente instigados a expressar suas opiniões, preferências e desejos. As confissões já não são obtidas por meio da tortura, mas, sim, afavelmente. Ao contrário dos prisioneiros do panóptico de Bentham, os usuários do panóptico digital sentem-se livres e exibem-se sem maiores pudores; entretanto, na realidade, e paradoxalmente, é justamente essa sensação de liberdade que propicia o controle total e absoluto.

III. Sociedade da transparência
Assiste razão a Han quando afirma categoricamente que não há, hoje, slogan que domine mais o discurso público do que a transparência[17]. Na atualidade, afirma Han, o lema da transparência converteu-se numa “coação sistêmica que abarca todos os processos sociais, submetendo-os a uma profunda modificação”[18]. E continua: “Hoje, o sistema social submete todos os seus processos a uma coação por transparência, para operacionalizar e acelerar esses processos”[19]. O mote da transparência consiste num imperativo generalizado por exposição total e visibilidade máxima. A bem da verdade, a sociedade da transparência é uma sociedade da suspeita, que renega a confiança e que, por isso mesmo, opta pela vigilância e pelo controle. Pois bem. Em nome da transparência, exige-se, inclusive, um desnudamento ilimitado dos sujeitos, o que se dá por meio do aniquilamento de suas esferas de privacidade e intimidade. A sociedade da transparência revela-se, assim, como uma sociedade da post-privacy[20]. Enquanto processo, a transparência é capaz de eliminar toda e qualquer resistência, ajustando as coisas ao curso do capital e da comunicação[21]. O segredo e o silêncio, por exemplo, enquanto formas de resistência, devem ser banidos.

Na sociedade da transparência, o grande volume de dados gerados a partir de buscas na internet (big data) não somente toma a forma de um big brother, mas também de big business e, em último grau de sordidez e degenerescência, de big banishment. Explica-se o que se diz por meio de um breve relato acerca das atividades de uma enigmática empresa americana, cujo nome não quero lembrar. Trata-se, como relata Han, de uma empresa especializada em big data, que já reúne os dados pessoais de aproximadamente 300 milhões de cidadãos americanos (portanto, da quase totalidade da população daquele país), e cujo lema é “Oferecemos uma visão 360 graus do seu cliente”[22]. Por meio de uma análise dos dados obtidos, tal empresa classifica as pessoas em 70 categorias. Pessoas com baixo valor de mercado, por exemplo, são classificadas como "lixo". Evidentemente, essa empresa comercializa tais informações para inúmeros propósitos, como análise de crédito, marketing etc. E é claro que pessoas rotuladas como "lixo" não terão acesso ao crédito[23]. O lixo deve ser banido. Aqui, o panóptico exerce a função de um banóptico (expressão cunhada por Didier Bigo[24]), é dizer, de um dispositivo que identifica pessoas que não possuem qualquer valor para o sistema e as bane[25].

IV. As consequências da sociedade da transparência para o sistema penal
O preciso diagnóstico de Han acerca da configuração de uma sociedade da transparência permite-nos refletir sobre o futuro do sistema penal. Como vimos, a sociedade da transparência é, acima de tudo, uma sociedade confessional. Somos constantemente vigiados por aparelhos que utilizamos e portamos. Ora, se assim é, então a primeira e mais óbvia consequência de uma tal sociedade para o sistema de Justiça Criminal será um aumento vertiginoso das, assim denominadas, provas informáticas[26].

Na sociedade da transparência, somos não somente os agentes voluntários de nossa própria vigilância, como também os observadores da vida alheia. A sociedade da transparência é uma sociedade da suspeita e da desconfiança. Trata-se, como sabemos, de uma sociedade em que todos vigiam todos. Ora, não é difícil concluir-se a partir daí que a sociedade da transparência será uma sociedade de whistleblowers, que, na maioria dos casos, não agirão por propósitos altruísticos, mas, sim, por desígnios menos elevados ou até mesmo abjetos.

Na sociedade da transparência, por meio da vigilância digital, serão feitos prognósticos a respeito do futuro comportamento dos sujeitos. Uma tal sociedade, lamentavelmente, realizará uma profunda revisão do princípio cogitationes poenam nemo patitur.

Para além de consistir numa sociedade da suspeita, sabemos também que a sociedade da transparência é uma sociedade que busca eliminar toda e qualquer forma de resistência ou negatividade, ajustando as coisas ao curso do capital, da comunicação e da informação. Em nome da transparência, pleiteia-se, inclusive, uma iluminação total do indivíduo. Ora, uma sociedade que se move por esse espírito certamente produzirá efeitos devastadores para o princípio do due process of law e seus consectários lógicos. Claro, numa sociedade como essa, o processo será visto como resistência, como obstáculo a ser eliminado. Assim, os princípios da presunção de inocência e do nemo tenetur se detegere, por exemplo, serão aniquilados na prática; o direito ao silêncio, enquanto negatividade, será visto como um autêntico insulto (uma heresia!). Também será considerada como de superlativa gravidade a conduta de não utilizar meios que deixam registro, como e-mail ou WhatsApp (tais condutas serão classificadas como mecanismos normalmente utilizados por quem está inserido num contexto de franca atividade criminosa)[27]. É evidente: a sociedade da transparência não tolera lapsos de informação; ela coloca sob suspeita tudo aquilo que não se submete à máxima visibilidade! Será preciso, pois, que o sujeito se desnude ilimitadamente. Já não mais haverá possibilidade de resistência e, assim, já não mais haverá defesa. Esse Leitmotiv certamente explica o grande êxito, ocorrido nos Estados Unidos nas últimas três ou quatro décadas, do instituto do plea bargaining e do seu núcleo central, o guilty plea. Desde então, mais de 90% dos casos naquele país são resolvidos dessa forma[28]. E é preciso recordar a subsequente adoção desse modelo por outros países, a exemplo da Alemanha (Absprache), da Espanha (conformidad), da Itália (pattegiamento), somente para citar alguns exemplos. No Brasil, temos como produto da sociedade da transparência o ignominioso instituto da delação premiada. E o que o futuro nos reserva? Seguramente, veremos cada vez mais imputados que, temendo os custos e os riscos de um processo penal, sentir-se-ão coagidos a celebrar acordos, abdicando, assim, de importantes direitos consagrados em nossa Constituição Federal, a exemplo da presunção de inocência, do direito ao silêncio, do contraditório e da ampla defesa. Como bem diz Casara, por meio de tal instituto, verifica-se uma grave substituição no processo penal da noção de verdade (aproximativa) pela noção de informação, compreendendo-se como tal qualquer dado que confirme a hipótese acusatória[29].

O sistema penal decorrente da sociedade da transparência será bestial. A translucidez simplesmente provocará a dissolução da alma humana, que por sua natureza “necessita de esferas onde possa estar consigo mesma, sem o olhar do outro”[30].


[1] Mir Puig, Introducción a las bases del Derecho penal, Barcelona, 1976, passim.
[2] Expressa grande preocupação com o regime neoliberal, Mir Puig, Neoliberalismus, Finanzkrise und Strafrecht in Schünemann (Edt.), Die sogenannte Finanzkrise – Systemversagen oder global organisierte Kriminalität?, Berlin, 2010, págs. 10-11.
[3] Han, Transparenzgesellschaft, Berlin, 2012, passim.
[4] Cfr. Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, Paris, 1975, passim.
[5] Cfr. Foucault, Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979), Paris, 2004, passim.
[6] Han, Psychopolitik: Neoliberalismus und die neuen Machttechniken, Berlin, 2014, passim.
[7] Foucault, Surveiller et punir, em especial, págs. 159 e ss.
[8] Han, Im Schwarm. Ansichten des Digitalen, Berlin, 2013, pág. 98.
[9] Han, Psychopolitik, págs. 37 e ss.
[10] Han, Im Schwarm, págs. 97-98.
[11] Cfr. Pinker, prefácio a Stephens-Davidowitz, Everybody Lies. Big Data, New Data, and what the internet can tell us about who we really are, New York, 2017, págs. IX e ss.
[12] Han, Im Schwarm, pág. 98; o mesmo, Psychopolitik, págs. 77 e ss.
[13] Han, Im Schwarm, pág. 92
[14] Han, Im Schwarm, págs. 92-93.
[15] Bauman/Bordoni, State of crisis, Cambridge, 2014, pág. 48.
[16] Bauman/Bordoni, State of crisis, Cambridge, 2014, págs. 48-49.
[17] Han, Topologie der Gewalt, Berlin, 2011, pág. 128.
[18] Han, Transparenzgesellschaft, pág. 6.
[19] Han, Transparenzgesellschaft, pág. 6.
[20] Cfr. Han, Transparenzgesellschaft, págs. 8-9.
[21] Han, Transparenzgesellschaft, pág. 5.
[22] Han, Im Schwarm, pág. 94.
[23] Han, Psychopolitik, págs. 90 e ss.
[24] Bigo, Globalized (in)Security: the Field and the Ban-opticon in Illiberal Practices of Liberal Regimes: The (In)Security Games, Paris, 2006, págs. 5 e ss.
[25] Bauman/Lyon, Liquid Surveillance: A Conversation, Cambridge, 2013, pág. 62.
[26] Cfr. matéria publicada aqui https://www.conjur.com.br/2018-mar-14/internet-coisas-usada-prova-julgamentos-eua.
[27] Algo que já começa a ocorrer. Cfr a matéria publicada aqui https://www.conjur.com.br/2018-fev-28/mp-transforma-advogado-suspeito-grampo-conversas.
[28] Cfr. Schünemann, Zur Kritik des amerikanischen Strafprozessmodells in Wesslau/Wohlers (edts.), Festschrift für Gerhard Fezer, Berlin, 2008, pág. 566.
[29] Casara, Estado Pós-Democrático, págs. 201 e ss.
[30] Han, Transparenzgesellschaft, pág. 8.

Autores

  • Brave

    é advogado criminalista em Brasília. Doutor em Direito Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha), com período doutoral na Universidade de Bonn (Alemanha). Professor da pós-graduação do IDP - Brasília.

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